Discursos dissonantes sobre a Alienação Parental?
Ludmila Ribeiro, Camila Cardeal, Lara Falcão, Sarah Oliveira,
Mariana Avelar, Alessandra Mendes, Leticia Cavalcante
Texto originalmente apresentado na coluna “Por elas” no site Justificando
No Brasil, a alienação parental é definida pela Lei nº 12.318/2010. Se caracteriza pela situação em que um dos genitores (ou um de seus parentes), aquele que detém a guarda dos filhos, tenta dificultar ou impedir que (as)os filhas(os) mantenham relacionamento ou vínculos afetivos com o genitor que não detém a guarda. Por meio de uma série de manipulações, o genitor ou parentes alienantes utilizam as(os) filhas(os) como instrumento de agressão e retaliação dirigida ao genitor sem a custódia, levando (as)os filhas(os) a rejeitá-los, ou mesmo odiá-los.
A Lei 12.318/2010 se insere no bojo de outras normativas que dizem respeito a como o Estado intervém nas dinâmicas familiares por meio de decisões judiciais. Com efeito, a Alienação Parental pode ser entendida como uma categoria com capilaridade, isto é, com capacidade de se acoplar a diferentes ângulos dos conflitos familiares. Se há um valor de proteção da infância e do melhor interesse da criança que norteia os discursos oficiais sobre o tema, a literatura contemporânea aponta que a alegação de prática da alienação parental cumpre, na prática, funções latentes que reproduzem as desigualdades próprias dos papeis de gênero, quais sejam, da mulher/mãe e homem/pai. Alguns estudos empíricos indicam que a alienação parental pode, por exemplo, ser utilizada para descredibilizar acusações de violência intrafamiliar (cometida contra as mulheres ou crianças). É utilizada também para controlar os comportamentos das mães, especialmente quando há ameaças de acusar de alienação parental uma mulher que pretenda se separar, denunciar formas de violência ou discutir o valor da pensão alimentícia.
Neste bojo, algumas decisões judiciais reforçam entendimentos sobre o que é a “boa mãe” ou “o que a mulher deve suportar para a boa criação das(os) filhas(os)”, contribuindo para reforçar a estereotipação feminina, o que inclui a submissão à violência para a continuidade do vínculo maternal. Tais posicionamentos apresentam uma compreensão sui generis da mulher que denuncia violência doméstica num processo de divórcio. O pressuposto é de que a mulher está fazendo uma falsa alegação para afastar o pai da(o) filha(o), o que seria uma conduta alienante. Por isso, ela precisaria ser penalizada com a reversão da guarda, que sairia da mãe e iria para o pai. Argumentamos que esses posicionamentos são deturpações, decorrentes de um entendimento machista das disputas conjugais, que veem a mulher que denuncia o pai da criança por violência doméstica como aquela que está buscando se vingar (da dissolução do vínculo conjugal) e não se proteger. É, por essa razão, que a LAP poderia ser considerada uma forma sofisticada de controle sobre as mulheres, se conformando numa violência de gênero.
A proposta da coluna de hoje é apresentar os resultados iniciais de uma pesquisa em andamento, realizada nos sites das agências que compõem o sistema de justiça criminal estadual (polícia militar, polícia civil, ministério público, defensoria pública e judiciário), para compreender quais são os discursos que essas burocracias promovem quando se referem à alienação parental. Trata-se de verificar se e como essas instituições vinculam a denúncia de violência doméstica à alienação parental (promovendo a sofisticada violência de gênero) e em que medida procuram desafiar esse entendimento, garantindo a proteção dos direitos femininos (especialmente a possibilidade da comunicação de crimes), como forma de se preservar a integridade das mulheres e das crianças.
Notas sobre a coleta de dados
Os dados aqui apresentados foram coletados a partir de um formulário que guiou a busca de informações nos websites das instituições públicas. Foram visitados os sites institucionais das polícias militares e civis, promotorias de justiça, seções judiciárias e defensorias públicas de todas as 27 unidades da federação. O objetivo era identificar e sistematizar quais são os procedimentos empregados para a detecção da alienação parental, se existe alguma instância especializada no assunto, quais são as informações sobre esse serviço e em qual temática a alienação parental está enquadrada (se família, mulher, crianças e adolescentes, criminal ou outros). Também nos interessava saber se existiam formas de contato para denúncia, serviços para acolhimento e orientação às vítimas, procedimentos para detecção da alienação parental, produção de cartilhas informativas, promoção de eventos sobre a temática e estatísticas sobre o problema.
Os resultados iniciais demonstraram que a alienação parental não é um assunto muito discutido pelas instâncias pesquisadas. Dentre os 135 sites consultados, a informação preponderante foi a realização de eventos sobre a temática (44% das instituições promoveram atividades dessa natureza). Quanto à institucionalização do tema, 27% das agências enquadraram a alienação parental em uma temática específica, sendo que em 81% o assunto está na área da família. Os serviços voltados para as vítimas não tiveram destaque: 19% têm algum serviço disponível para a vítima (como o acolhimento, contato para denúncia), 10% disponibilizam contato para denúncia, 7% apresentaram atividades para as vítimas (como as oficinas de parentalidade) e 10% ofereceram respostas para quem vivencia ou vivenciou a alienação parental. Neste caso, destaca-se a orientação para a ação judicial, o que revela a priorização da judicialização dos conflitos para a administração do problema. Por fim, 31% das instituições apresentaram uma definição de alienação parental, 13% indicaram os procedimentos para a sua identificação e 7% apresentaram alguma estatística sobre o tema.
Quanto à relação entre violência doméstica e alienação parental, foco deste texto, apenas 7% fizeram essa relação. Na próxima seção, nos debruçamos nestes materiais, que somam oito documentos, sendo quatro dos Ministérios Públicos do Ceará, Minas Gerais, Bahia e Pará, dois das Defensorias Públicas dos estados de Minas Gerais e São Paulo, e dois dos Tribunais de Justiça de Minas Gerais e Mato Grosso.
O que nos dizem os documentos institucionais sobre a alienação parental?
Os Ministérios Públicos estaduais têm atuado na difusão da alienação parental no Brasil, com destaque para a produção de cartilhas. Essas funcionam como guias, apresentando detalhadamente, em linguagem acessível e visual, o que é a alienação parental, como identificar práticas alienantes, as circunstâncias em que ocorrem tais ações, as implicações emocionais para a criança ou a(o) adolescente envolvido no conflito, onde procurar ajuda, etc. Todo esse material ilustra a pretensão de intervenção estatal no âmbito familiar. Vários sublinham como a LAP e as instituições judiciais buscam racionalizar problemas que são permeados por questões afetivas, numa crença de que a intervenção estatal pode magicamente e coercitivamente criar uma nova harmonia familiar. Desconsidera-se, assim, como esses problemas foram historicamente construídos pelos cônjuges, e também em suas interações com os(as) filhos(as).
Os documentos disponíveis nos sites do Ministério Público da Bahia e do Ministério Público do Pará realizam um diagnóstico minucioso do problema, baseando-se em teorias controversas. Entre elas está a “teoria” elaborada Richard Gardner, responsável pela definição da alienação parental, que teria sido observada em sua experiência clínica. Esse psiquiatra foi bastante criticado por seus pares, pela questionável cientificidade da sua pesquisa, bem como pelo empenho para a classificação da Síndrome da Alienação Parental (SAP), identificada por ele, como uma desordem psiquiátrica. Esse entendimento do problema foi rechaçado pela Organização Mundial de Saúde, que vetou a inclusão da “alienação parental” no rol de enfermidades que integram a Classificação Internacional de Doenças (CID) vigente a partir de 2022.
Então, se as cartilhas do MP da Bahia e do Pará podem ser úteis pela acessibilidade, devem ser manuseadas com cautela, pois baseiam-se em discursos que carecem de validade científica. Soma-se a isso o discurso machista que ambas propagam, posto que o sentimento de vingança após o término da relação conjugal é frequentemente apontado como elemento motivador da alienação parental. A correlação entre a vingança como propulsora da alienação parental revela a ingerência institucional em aspectos subjetivos da psique humana. O desejo de vingança, juntamente com o rancor ou a mágoa, eram exemplificados por Gardner como motivações para um genitor, especialmente a mulher, desqualificar o outro, impedir ou restringir o contato com a criança (Cabral et al, 2020). As cartilhas do MP da Bahia e do Pará reproduzem esse entendimento, fazendo com que a mãe seja enquadrada como alienante e o pai como alienado.
As dúvidas em torno da concepção e operacionalização da alienação parental são mencionadas na cartilha do Ministério Público de Minas Gerais. Este documento adianta-se em afirmar que, embora exista legislação específica (a LAP), a prática em si é ainda pouco compreendida, tanto no âmbito jurídico quanto no campo saúde mental. Neste contexto, o material se propõe a, didaticamente, expor o que é a alienação parental, quem pode praticá-la, como evitá-la, adentrando numa explicação sobre guarda compartilhada como mecanismo de prevenção de condutas alienantes.
Diferentemente das produções dos MP da Bahia e do Pará, a cartilha de Minas Gerais não baseia-se explicitamente na teoria de Gardner, mas a violência de gênero também é visível neste material. Um exemplo é a seção aberta com a seguinte pergunta: “Quem ‘enche’ mais a cabeça dos filhos: o pai ou a mãe?”. A resposta à indagação indica, de forma quase exemplar, que a mãe é a principal alienadora. E arremata afirmando que isso ocorre porque a guarda da criança ou adolescente é, na maior parte dos casos, exercida pela mãe. Ainda há outros trechos na cartilha mineira que a aproxima do material produzido pelo MP do Pará. Nesse caso, chama a atenção um exemplo em que a genitora, traída e ressentida, busca fazer vingança utilizando-se dos filhos e, portanto, praticando alienação parental contra o pai.
O material disponibilizado pelo Ministério Público do Ceará não se baseia na teoria de Gardner, focando mais a lei brasileira e outros aspectos dessa legislação. Este documento traz referências não apenas do arcabouço legal, como também de artigos e textos acadêmicos sobre o tema. Outro ponto de destaque é a forma como a cartilha se refere ao alienador. São utilizados sempre termos neutros, evitando “pai” ou “mãe” para não gerar conclusões precipitadas sobre o autor da alienação. Há ainda a menção a outros potenciais alienadores, como pais, avós, tios e pessoas que tenham convivência próxima com a criança e a(o) adolescente.
O material disponibilizado pela Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG, 2015), intitulado “Você Pratica Alienação Parental?”, de modo semelhante às cartilhas do Ministério Público, apresenta definições e casos para demonstrar, didaticamente, o que é a alienação parental. Embora a DPMG reconheça que qualquer um dos genitores, e até outros parentes próximos à criança (que compõem a família extensa) possam praticar a alienação, é evidente que a cartilha dirige-se à genitora. Por exemplo, é apresentada uma história em quadrinhos que retrata o caso de uma mãe, alienadora, que impede seu filho de encontrar o pai nos dias estipulados para a visita. A mensagem é que a mãe se utiliza do filho para se vingar do pai, o que traz consequências para a criança, visíveis em seu desempenho escolar e em seus comportamentos, que passam a ser mais agressivos. A cartilha apresenta ainda uma série de perguntas frequentes sobre a alienação parental, que variam desde a mãe se queixar sobre o casamento para o filho, perpassando por criar obstáculos à comunicação entre o pai e a criança, levantar falsas denúncias de abuso sexual com a acusação do pai, realizar “lavagem cerebral” na criança contra o pai, apresentar novo namorado ou marido como sendo pai, não consultar o pai para tomar decisões importantes acerca do filho e, por fim, mudar de endereço e não comunicar ao pai. Este último exemplo é bastante preocupante, uma vez que é típico de mulheres que sofreram violência doméstica ou que presenciam abusos contra seus filhos mudar de endereço e não comunicar o agressor para resguardar a própria vida. Vale lembrar que tais medidas contam, muitas vezes, com autorização judicial, o que parece ser ignorado esses materiais.
Num ponto diametralmente oposto está a Defensoria Pública de São Paulo, que redigiu a nota técnica Nº 01/2019 e requereu junto ao Supremo Tribunal Federal seu ingresso como amicus curiae na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) da Lei de Alienação Parental (LAP), proposta pela Associação de Advogadas pela Igualdade de Gênero (AAIG). O Núcleo Especializado na Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem) se destaca pelo desempenho de um papel integralizador da igualdade de gênero. Os documentos elaborados pela instituição se posicionam claramente contra à LAP, demandando a sua revogação, salientando as objeções à proteção das crianças encontradas na respectiva lei e na sua base legal-teórica e, ainda, tentam explicitar as problemáticas/controversas imbuídas na LAP. Visando mitigar e extinguir os efeitos do patriarcado sobre as mulheres, o núcleo promove discussões sobre as evidências lógicas na/da aplicabilidade da LAP e como essa possui um peso maior sobre a mulher, podendo ser instrumentalizada para a violência de gênero. Na nota técnica, o Nudem apresenta como a teoria por trás da alienação parental e do projeto de lei que deu origem à LAP apresentam discursos que atingem as mulheres, estereotipando-as como seres irracionais, que buscam a vingança com o fim do vínculo conjugal, especialmente, por meio das crianças. A atuação do Nudem desvela como a LAP promove a criação de um perfil de mães alienadoras que mentem, produzem narrativas e implantam “falsas memórias” nas crianças para punir os pais e afastá-los do convívio com as(os) filhas(os).
Nos materiais do Poder Judiciário, destaca-se a cartilha do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT). O material disponibilizado possui como premissa a teoria de Gardner, em que crianças e adolescentes são vítimas do desejo de vingança do genitor alienador, que pode ser tanto as figuras primárias de afeto familiar (como o pai ou a mãe) e/ou pessoas com outros graus de parentesco (como avós e/ou tias/os). Buscando atingir outrem, manipulações são compelidas na vítima, que, em razão de sua vulnerabilidade, não consegue reagir ao poder de dominação e influência do outro. Embora a cartilha não tenha especificado a mulher como a principal alienadora, como foi explicitado por Gardner, toda a argumentação da Lei de Alienação Parental e seu conteúdo foi pautada pela aceitação das ideias publicadas pelo psiquiatra norte-americano, que vê a mãe como quem busca vingança e, para tanto, comete a alienação parental.
Na publicação “Alienação Parental”, produzida pela Assessoria de Comunicação Institucional do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), são mobilizados relatos de genitores que alegam ter sofrido alienação parental. São também acionadas narrativas de adultos que teriam vivenciado a alienação parental quando crianças - com destaque à primeira infância. Todos os exemplos são articulados de modo a exemplificar a prática e divulgar trechos da LAP. Contudo, as expectativas de gênero são visíveis nessas situações, já que a mãe é colocada como a alienadora e o pai como o genitor alienado.
Em suma, entre os materiais institucionais encontrados nas agências estaduais que compõem o sistema de justiça estadual, a alienação parental é situada como uma conduta realizada majoritariamente por mulheres que não se conformam com a dissolução do vínculo conjugal. Neste mote, elas construiram imagens distorcidas dos pais e se utilizam da denúncia de casos de violência doméstica de maneira a formar o que seria uma história mais convincente. Logo, as cartilhas visam a alertá-las sobre como esses posicionamentos são, em verdade, condutas enquadradas como alienação parental pela Lei 12.318/2010, razão pela qual essas mães precisam ser constrangidas com sanções. A mais comum delas é a reversão da guarda que, muitas vezes, colocam as crianças e adolescentes sob a custódia de pais que são abusadores, o que pode levá-las à morte. Pena que nos materiais institucionais, com exceção da cartilha do Nudem (SP), não existe espaço para esse debate.
O que concluir?
A lei de alienação parental vem sendo motivo de debate no contexto nacional, entre os apoiadores da lei e aqueles que pedem a sua revogação. Ainda que exista controvérsia sobre a LAP na sociedade brasileira, nos documentos analisados o tema é tratado majoritariamente de forma consensual pelas instituições do sistema de justiça. Apenas a Defensoria Pública de São Paulo se apresentou contrária ao termo alienação parental e, consequentemente, à LAP. Em contrapartida, todos os demais documentos legitimam o conceito e a lei de alienação parental, reforçando expectativas de gênero que terminam por penalizar sobremaneira as mulheres. Elas são apresentadas, tratadas e tematizadas como frustradas, vingativas e alienadoras, estereótipo que dificilmente será desconstruído ao longo do processo judicial.
Em resumo, praticamente inexistem discursos dissonantes sobre a alienação parental, porque os materiais institucionais reforçam estereótipos de gênero, que já enquadram a mulher como aquela que praticará a alienação parental para se vingar do pai. Se todos são inocentes até que se prove o contrário, no caso dos conflitos judiciais que envolvem a LAP, as mulheres são previamente responsabilizadas quando não satisfazem a imagem idealizada de maternidade e família perfeita. O fato de cartilhas do Ministério Público, Defensoria Pública e Poder Judiciário reforçarem esse entendimento demonstra a força do patriarcado em pleno século XXI.
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