“Esse menino não tem mãe?” Sobre a responsabilização criminal de pais e o acesso a armas de fogo
Sobre a responsabilização criminal de pais e o acesso a armas de fogo
Valéria Cristina de Oliveira
Florence Fiuza de Carvalho
Texto originalmente apresentado na coluna “Por elas” no site Justificando
Uma prática peculiar de uma das autoras é, de vez em quando, se informar sobre a vida dos familiares e amigos por meio das suas atualizações em redes sociais. Por lá, fica sabendo dos aniversários, dos chás de revelação, das novas conquistas. Eventualmente, das notícias ruins. Porém, recentemente, o post de um afilhado chamou a atenção. Ele e sua esposa formam um jovem casal agradável, pacífico, cristão, dedicado às atividades pastorais de sua denominação religiosa e pais de dois meninos. Na foto postada, empunhavam com orgulho, cada um, uma arma de fogo. Posavam em frente a um banner que dava a entender que estavam em uma escola de tiro esportivo.
Isso a fez lembrar que em uma breve passagem pelos Estados Unidos, no distante ano de 2014, percebia com surpresa o fato de que não eram raras as fotos de colegas de Universidade empunhando armas em seus perfis em redes sociais. A própria, a convite de um colega, esteve um shooting range. Nome bonito para um quintal, cercado por muros, com alguns cavaletes ao fundo, onde cada um afixava cartazes com os círculos concêntricos que estão no imaginário de qualquer um quando pensam em “tiro ao alvo”. A uns 5 metros de distância, sob algo como um quiosque, com uma pequena bancada de madeira, os atiradores tentavam acertar seus alvos. Nenhuma divisória. Nenhuma proteção. Lado a lado, pessoas armadas também atiravam a esmo – como denunciava as inúmeras marcas nos muros e nas placas de sinalização do local.
Nessa mesma passagem pelo “Líder do mundo livre”, a Universidade que a recebia viveu uma noite de terror. Um estudante invadiu a biblioteca central e disparou contra colegas que ficaram feridos. Um deles com sequelas graves. O atirador foi morto pelos policiais que o interceptaram na saída do prédio.
Os Estados Unidos da América é vanguarda em termos de massacres e tiroteios em instituições de ensino, em todas as etapas de escolarização. São tantos os eventos que seria até difícil acompanhar, não fosse o fato de que também são referência na produção de informações. E essas informações dão conta de que têm crescido os casos de incidentes com armas de fogo dentro e fora de escolas americanas após a pandemia de Covid-19.
Recentemente, falamos sobre isso nesta coluna. Sobre as muitas violências que nossas crianças e adolescentes poderão experimentar na volta às aulas. As armas apareciam lá no finalzinho, na lista dos eventos mais raros, apesar de serem os mais letais e de também estarem despertando a preocupação de diretores e professores nos Estados Unidos, onde a violência armada é um dos principais problemas daquela sociedade.
Porém, na última semana, uma decisão da Justiça Americana trouxe novamente à tona o debate sobre a presença de armas de fogo em escolas. Os pais de um estudante que disparou matando quatro colegas, foram indiciados por homicídio culposo pelos atos do filho. Não apenas por serem responsáveis legais pelo adolescente de 15 anos, mas porque eles, além de terem o presenteado com a arma, não zelaram pela sua guarda em casa e não interviram quando foram informados pela escola de que ele consultava sites de munição e fazia desenhos com temas violentos e pedidos de ajuda. Ao contrário, diante do alerta da escola, a mãe enviou mensagem de texto sugerindo que ele apenas evitasse ser “pego” quando estivesse buscando tais informações.
O assunto é polêmico e enseja algumas perguntas.
1) Os pais deveriam mesmo ser responsabilizados pelo que aconteceu?
Do ponto de vista legal, o ato de puxar o gatilho é um ato infracional cometido pelo adolescente. Guardadas as inúmeras particularidades entre os sistemas de Justiça Criminal dos dois países, vale observar o quanto a decisão da Promotora do estado de Michigan surpreendeu a opinião pública naquele país. A decisão é inédita e pode significar a retomada de uma discussão que ganhou as ruas americanas em 2018 com movimentos que lutavam para que a política de controle ao acesso a armas de fogo e munição fosse tratada como parte do problema dos frequentes massacres em escolas. Ou seja, além das questões de convivência na escola e saúde mental dos estudantes, evitar os massacres também implicaria restringir o acesso a armas de fogo.
Não que essas questões escolares não sejam condicionantes desse grave problema americano que também já aconteceu por aqui. De forma alguma. São absolutamente relevantes do ponto de vista pedagógico e, como mencionei, temos discutido bastante nesta coluna sempre que falamos da relação entre violências e escolas. Porém, a relação com um contexto político que favorece e até estimula que cada cidadão tenha armas para defender sua família, propriedade e liberdades individuais pode também facilitar que tais eventos aconteçam em unidades de ensino. E, nesse caso, a responsabilidade pode ser também do proprietário das armas, que tem conhecimento sobre os riscos e que, eventualmente, reforce o uso da força como uma estratégia de defesa/ataque.
Uma casa onde haja uma cultura da arma de fogo, proporciona mais cedo que para a maior parte da população um processo de socialização no manuseio e no conhecimento sobre este utensílio que, certamente, expõe essas crianças e adolescentes a um contato diferenciado em relação aos seus pares.
2) Quais os efeitos de uma responsabilização penal?
Se parece muito óbvio que a família que possui em casa armas de fogo e não proporciona condições adequadas para sua guarda em segurança deve ser responsabilizada civilmente pelo ato, o indiciamento por um crime não parece ser algo livre de debate. E isso parece valer para os americanos, mas também para os brasileiros.
Lá, a decisão do indiciamento por homicídio culposo esbarra nas particularidades em relação à legislação dos entes federados. Em cada um deles, a legislação sobre armas de fogo é distinta, em alguns mais e em outros menos flexível. Em Michigan, local dos fatos, não há previsão legal sobre a responsabilidade dos pais sobre esse tipo de delito cometido por filhos menores de idade.
No Brasil, recentemente, o Ministério Público do Mato Grosso parece ter adotado postura semelhante – ainda que anterior – a do caso americano. Em julho de 2020, em um condomínio com casas de alto padrão, uma adolescente matou com um tiro no rosto a amiga que lhe fazia uma visita. A família, praticante de tiro esportivo, sempre tinha armas em casa, mas nesse caso a arma utilizada era do namorado da jovem que também esteve no local no mesmo dia.
Em janeiro deste ano a adolescente iniciou cumprimento de medida socioeducativa em meio fechado de internação onde segue até a presente data. Porém, antes disso, quatro meses após a morte da amiga, seus pais foram indiciados pelos crimes de homicídio culposo, corrupção de menor, porte ilegal de arma, fraude processual e por entregar arma para menor de idade. A lista de crimes é extensa e reflete uma sucessão de eventos levantados durante a investigação que apontam, inclusive, que num primeiro momento tentaram ocultar dos serviços médicos de urgência o fato de que houve um disparo de arma de fogo.
Como na decisão americana, também há espaço para questionamentos acerca do indiciamento no Brasil. Em habeas corpus impetrado em 2013, o ministro Marco Aurélio Bellizze do Superior Tribunal de Justiça (STJ) se baseou no princípio da anterioridade legal para decidir que um pai não poderia ser automaticamente indiciado por homicídio culposo por ter deixado acessível em casa as chaves do carro que o filho menor de idade dirigia quando, embriagado, atropelou e matou uma pessoa. Segundo a decisão, não era possível atribuir relevância causal direta dos fatos e que seria excessiva a responsabilização de terceiros por ato anterior ao delito.
Naturalmente, quando um pai deixa armas de fogo acessíveis aos filhos estamos diante de um problema muito mais grave que a negligência com as chaves de um automóvel. E, antes de prosseguir, vale destacar o óbvio (felizmente, para a maioria) que o direito de adquirir e portar uma arma de fogo não se equivale ao direito de dirigir um automóvel e, eventualmente, provocar um acidente de trânsito. A arma de fogo foi desenvolvida com o objetivo de ferir. O carro, não.
Porém, em relação à repercussão penal, o caso da família de Cuiabá e do pai do adolescente que matou alguém no trânsito tem algo em comum: a responsabilização criminal por atos infracionais gravíssimos cometidos pelos seus filhos. Essa não parece ser uma questão jurídica simples e não é o tema central desta coluna. Porém, menciono o fato da família de Cuiabá para dizer que já houve por aqui encaminhamento semelhante ao que ocorreu nos Estados Unidos. E que, como ocorreu naquele país, o entendimento de qual é a melhor alternativa não está pacificado. De início, mais que a existência ou não de jurisprudência, parece-nos central refletir sobre os efeitos não esperados da popularização desse tipo de medida.
3) O que acontece se a responsabilização penal dos pais pelos delitos dos filhos se populariza?
Pelo que conhecemos das decisões judiciais no Brasil e sobre o modo como são amplamente enviesadas por variáveis como raça, gênero e nível socioeconômico, observaríamos o uso do argumento da desestruturação familiar para aumentar o encarceramento de pessoas pobres e negras. São vários os mecanismos que poderiam levar a esse resultado, mas destacamos apenas um que nos parece ser o mais óbvio.
Atos infracionais cometidos por crianças e adolescentes filhos de mulheres que chefiam sozinhas domicílios nas periferias do país podem se tornar os mais criminalizados a partir do argumento da responsabilidade da família. A falta de supervisão das crianças é uma variável observada há tempos pela criminologia como uma daquelas a explicar maior incidência de delitos cometidos por jovens. Da mesma forma, é argumento para operadores de justiça que atribuem a esse cenário a maior exposição dos jovens de bairros de baixo nível socioeconômico a maior risco de se envolverem com o “mundo do crime”.
Acontece que a esperada supervisão, que mantém crianças em casa e protegidas pela proximidade física com a mãe, não é possível quando essa mulher trabalha fora e não conta com o apoio do parceiro no domicílio, nem com condições financeiras para garantir escola integral ou babá. O argumento da negligência, se aplicado a contextos que não impliquem apenas a manutenção de armas de fogo sem locais adequados para armazenamento, pode levar essas mulheres a responder judicialmente pelo “crime” de serem mães pobres de crianças negras que cometeram atos infracionais.
Novamente, traçando o paralelo com a sociedade americana, essa já é uma preocupação diante do caso da família de Michigan. Um país que sofre com a segregação racial e com o encarceramento em massa ocasionado pelas políticas de tolerância zero tende a ter em medidas como essa mais um vetor que leva a população negra à Corte e, com frequência, às prisões.
4) O que a política de controle de armas de fogo tem a ver com tudo isso?
Mais do que nunca, é preciso entender a violência com o uso de armas de fogo como um problema coletivo e político, não apenas individual. A responsabilização penal é, por definição, individual, já que trata de casos concretos. Aumentar o alcance dessa criminalização, fazendo-a chegar às famílias, não vai alterar o caráter individual da solução e pode acarretar outros danos, em especial com a ampliação do controle penal sobre famílias pobres e negras. A saída do problema -que, reforçamos, é coletivo e político - parece ser mesmo uma política de controle de armas mais rígida, que dificulte o porte e a posse de armas, aumente a fiscalização sobre a venda e fortaleça um sistema integrado de informações sobre as armas em circulação no país.
Aí sim, com uma regulação robusta e seriamente cumprida, é possível pensar nas repercussões civis e penais para quem tiver autorização legal para possuir ou portar arma de fogo e permitir que outras pessoas inaptas para o manuseio desses equipamentos, como crianças e adolescentes, o façam.
O problema é que o governo federal tem dado passos no sentido oposto, ou seja, tem flexibilizado o acesso a armas de fogo e munições por meio dos inúmeros decretos e portarias que alteram o Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2003). O mesmo governo também se empenhou na redução da alíquota de exportação de armas de fogo. Isso sem falar nas declarações polêmicas do presidente sobre o quão é importante para uma nação que o seu povo esteja armado para se proteger de restrições às liberdades impostas por governadores e prefeitos. Um argumento retórico utilizado para desqualificar as medidas de distanciamento social adotadas para reduzir a circulação do novo coronavírus nos piores momentos da pandemia de Covid-19. O resultado não poderia ser outro a não ser a explosão do registro de novas armas de fogo e de atiradores.
No apagar das luzes de 2021, duas outras ameaças à já fragilizada política de controle de armas no Brasil estão em andamento. A primeira se traduz no Projeto de Lei 5.414/2020, debatido recentemente pela Câmara de Deputados, e que versa sobre a “criação de normas” para a publicidade de armas de fogo em território nacional, o que até agora é punido com multa segundo o artigo 33 do Estatuto do Desarmamento. Na prática, o PL apresentado pelo Deputado Eduardo Bolsonaro propõe que “produtores, atacadistas, varejistas, exportadores e importadores de armas de fogo, acessórios e munições” possam utilizar quaisquer veículos de comunicação social para a veiculação de peça publicitária que contenha, inclusive, imagens de armas de fogo. A proposta é tão polêmica que já teve manifestação contrária do próprio relator que antecipou seu parecer desfavorável ao projeto.
A segunda ameaça está na possibilidade de que a Comissão de Constituição e Justiça do Senado (CCJ) vote antes do recesso parlamentar o relatório do Senador Marcos do Val sobre o PL 3.723/2019 que prevê nova e robusta alteração do Estatuto do Desarmamento com vistas a, entre outras coisas, eliminar a necessidade de marcação das munições comercializadas no país (o que prejudica a investigação de crimes cometidos com uso dessas munições) e ampliar o mínimo de armas adquiridas pelos Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs), sem definição de um teto máximo permitido. Os detalhes dos retrocessos previstos pelo projeto e as falácias utilizadas no relatório do deputado são descritos por Nota Técnica dos Institutos Igarapé e Sou da Paz.
Uma das saídas para frear o ímpeto armamentista do atual governo federal tem sido a mobilização social e a pressão sobre os poderes Executivo e Judiciário. Isso funcionou em alguns momentos. Por exemplo, quando a Ministra Rosa Weber do Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu trechos importantes de decretos presidenciais, como aquele que aumentava para seis o número de armas que poderiam ser adquiridas pelo cidadão comum.
Dessa vez, por meio da Campanha “Não Somos Alvo”, temos a chance de pressionar os senadores que fazem parte da CCJ contra a aprovação do relatório do senador Marcos do Val, impedindo o avanço do projeto de lei em seu formato atual. Basta clicar em https://www.naosomosalvo.com.br/ e enviar um e-mail demonstrando indignação com a inaceitável política de descontrole de armas de fogo que, apesar de não ser o caso da família de CACs de Cuiabá, pode vir a reforçar, no futuro, as armadilhas da responsabilização individual dos “adolescentes infratores” e suas “famílias negligentes”, o que é parte de um projeto histórico de criminalização da pobreza no país.
Florence Fiuza de Carvalho é socióloga, com mestrado em Sociologia e bacharel em Direito
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