Por que a decisão do STF de absolver um réu de feminicídio é um retrocesso?

 
Por que a decisão do STF de absolver um réu de feminicídio é um retrocesso?

O argumento da legítima defesa da honra e a absolvição de um réu confesso de tentativa de feminicídio em pleno 2020: como brechas na Justiça põem em xeque o avanço das leis de proteção à mulher no Brasil?

Cinco motivos pelos quais o Supremo errou ao reabilitar a “legítima defesa da honra”


Isabella Matosinhos

Angélica dos Santos

Daniely Reis

Ludmila Ribeiro


Texto originalmente apresentado na coluna “Por elas” no site Justificando

Em 2016, na pacata cidade de Nova Era, interior mineiro, um homem, suspeitando que sua ex-companheira estava envolvida com outra pessoa, tentou matá-la com três facadas. A vítima sobreviveu ao ataque e o agressor foi absolvido no ano seguinte pelo júri.  Esse é claramente mais um entre os diversos casos de feminicídio - tentados ou consumados - que diariamente acontecem no Brasil nos dias de hoje, ceifando a vida de uma mulher a cada seis horas. 

A partir da lei 13.104, de maio de 2015, que especificamente criou o crime de feminicídio, situações como essa são mais facilmente enquadradas como crime de ódio contra as mulheres. Tal delito se configura quando o ato é motivado pelo fato de a vítima ser do sexo feminino, isto é, quando a condição de ser mulher é razão para o menosprezo, discriminação e para a desconsideração de sua humanidade; o que, por sua vez, “legtima” (ou sustenta) a ação violenta. Quando a lei foi criada, um de seus objetivos era o de dar visibilidade a esses casos e evitar que homens que cometem esse delito fossem beneficiados por interpretações jurídicas anacrônicas. A mensagem era de categórica proibição ao homicídio de mulheres por razões de gênero, dado o reconhecimento da autonomia, da liberdade e da vida delas; direitos que por nenhuma razão, sequer de ordem moral, podem ser violados.

Uma das expectativas que se tinha com a implementação da lei do feminicídio era que justificativas moralizantes, acionadas recorrentemente, que absolviam ou diminuíam a pena dos acusados a partir do argumento de proteção da honra ou da natureza passional do delito não fossem mais consideradas válidas. Isso porque tais justificativas tinham enorme inspiração patriarcal e machista e não poderiam, portanto, encontrar respaldo em um Estado Democrático de Direito, que prevê a igualdade de direitos e garantias entre mulheres e homens. Ainda mais diante das conquistas que vêm sendo alcançadas pelas mulheres desde o século XX e, especialmente nas últimas décadas, em várias esferas da vida social: do voto à liberdade para expressar os próprios desejos.

Apesar desse cenário apontar para uma mudança social no sentido de consolidar a emancipação das mulheres, a realidade é ainda mais complexa. Lembram da tentativa de feminicidio na pacata cidade do interior mineiro em 216? No dia 29 de setembro de 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar o Habeas Corpus 178.777, foi na contramão dessa perspectiva e decidiu manter a absolvição do réu ainda que o júri, ao decidir pela absolvição no primeiro julgamento do caso, o tenha feito com base em um fundamento exclusivamente moral. 

É sobre essa decisão marcadamente obsoleta do STF que nos debruçamos no texto desta semana. Nosso objetivo é mostrar ao menos algumas razões pelas quais esse posicionamento da nossa mais alta corte de justiça é um verdadeiro retrocesso. Vamos entender por que.


Feminicídios e júri: por que há essa relação?

Para chegar até as razões do Supremo para manter a absolvição é preciso, em primeiro lugar, entender o desenrolar do crime em questão dentro da Justiça. A tentativa de feminicídio aconteceu em 2016 e teve seu julgamento, pelo Tribunal do Júri, em 2017. Aqui é importante destacar que o feminicídio é um tipo de crime doloso contra a vida, ou seja, é praticado com a intenção de matar, o que o torna de exame obrigatório não apenas pelo juiz, mas por um grupo de jurados, escolhidos entre “pessoas do povo” e que compõem o Tribunal do Júri. Tal sistema torna o tempo do processo mais longo, já que, primeiro, o juiz precisa reconhecer que houve o intuito de tirar  a vida de alguém para, em um segundo momento, os jurados poderem analisar o caso e decidir sobre o destino do réu.

Entretanto, o caso de Nova Era foi relativamente rápido. A tentativa de feminicídio aconteceu em 25 de maio de 2016, o juiz reconheceu que se tratava de um crime doloso contra a vida em 16 de janeiro de 2017 e o réu foi submetido ao julgamento pelo júri em 13 de junho de 2017.  Na ocasião, a defesa se valeu da tese da legítima defesa da honra para pleitear a absolvição do acusado. Segundo consta nos documentos do processo, o réu confessou o crime, justificando-o porque não se conformava com o pedido de separação por parte da esposa. Assim, para lavar a honra ferida pela saída da esposa do lar e com o novo relacionamento dela, o ex-cônjuge se aproveitou do intervalo de um culto religioso para desferir nela alguns golpes de faca. Os jurados não tiveram dúvidas de que se tratava de um “legítimo” motivo para a tirar a vida da mulher e decidiram pela absolvição do acusado.

Em tese, desde 1991, a “legítima defesa da honra” não poderia ser mobilizada para promover a absolvição de agressores  possessivos , como é descrito o réu de Nova Era. Neste ano, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que não existe honra ferida por traição ou suspeita de traição dentro de um relacionamento. Assim, mesmo comprovando-se o relacionamento extraconjugal ou o fim do vínculo amoroso, isso não torna possível usar a  violência como forma de "resolver" a situação. Aplicando esse entendimento ao caso de Nova Era, isso significa que o réu, descontente com o fim de seu relacionamento amoroso, deveria se valer de outros meios para resolver a situação - por exemplo, por meio da via civil, através de um pedido de danos morais - ao invés de recorrer à violência.

De todo modo, foi esse o argumento da defesa do acusado de Nova Era. Por isso, o Ministério Público recorreu da decisão, argumentando que ela estava em desacordo com a forma como o Poder Judiciário se posicionava desde 1991. O caso foi analisado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) e posteriormente pelo STJ: ambos decidiram pela anulação do júri e pela realização de novo julgamento, já que a honra ferida não poderia ser acionada como legítima defesa. O réu, inconformado com a possibilidade de ir novamente a julgamento, entrou com um Habeas Corpus no STF. O caso de Nova Era foi então analisado por cinco ministros: dois deles foram a favor do novo julgamento no júri (mantendo o entendimento do STJ) e três contra a reanálise. Venceu, assim, a posição da defesa do réu, que pleiteava pelo respeito ao veredicto do júri e, consequentemente, por sua absolvição com base na já mencionada,“legítima defesa da honra”.

O problema desta decisão do STF é que, além de revigorar um entendimento que parecia superado desde 1991, coloca em xeque a finalidade punitiva da lei do feminicídio. Se um dos motivos pelos quais essa lei foi criada era garantir a diminuição da impunidade de homens que matam mulheres por que se sentem proprietários daquelas vidas, quando o STF deixa impune um homem que confessou tentar matar sua esposa e foi absolvido em razão de sua honra, este tribunal está desconsiderando os propósitos da lei. Importa considerar que, a lei, sozinha, não conforma comportamentos, a simples existência da norma  não é suficiente para prevenir o crime. Porém, ela é um instrumento de coerção, que informa a sociedade que certas condutas não serão toleradas, ao contrário, serão punidas. 

Portanto, há uma importância simbólica na criação de  um crime específico de feminicídio: o Estado reafirma que  o crime de ódio contra mulheres é algo que ele condena e que a vida das mulheres é um valor por ele defendido. Nesse caso, a força da norma penal assume a maior relevância, pois parcela significativa de mulheres assassinadas no país morrem justamente por sua condição de mulher. Em resumo, a tipificação do feminicídio é extremamente relevante em termos de estatísticas criminais e ferramenta fundamental para o reconhecimento e combate ao machismo, que é lógica por detrás das violências que  vitimizam milhares de mulheres todos os dias no Brasil.


O STF e o ódio às mulheres: a decisão de 29 de setembro de 2020

O  fato de existir uma lei não faz, de modo geral, com que as pessoas deixem de cometer crimes. Assim, quando as pessoas, recorrem ao direito penal já é tarde demais para evitar o crime. Contudo o direito penal ainda tem um importante papel coercitivo à medida que informa quais condutas não serão toleradas e impõe a sanção para o caso de acontecerem. Levando isso em conta, enumeramos cinco razões para dizer de forma categórica que o STF tomou a decisão errada ao reabilitar a “legítima defesa da honra” como argumento válido para escusar da punição o réu confesso de tentar matar sua esposa, rasgando a lei do feminicídio. 

Motivo n.1. O STF é a mais alta corte de justiça brasileira, a mais alta instância de nosso Poder Judiciário. Assim como o Estado passa uma mensagem à sociedade quando decide criar a figura penal do feminicídio, a decisão do  STF de manter a absolvição de um acusado de feminicídio sob a sustentação de que o crime foi cometido em “legítima defesa da honra” também é significativa. A competência do STF é de decidir a respeito de assuntos de cunho constitucional. Isso significa, nesse caso específico, que os ministros não deliberaram diretamente a respeito desse crime de feminicídio em si, mas sim, de forma geral, sobre a soberania do júri. Isto é, se o resultado do júri poderia ou não ser modificado. O STF decidiu que não. Com base na técnica jurídica, os ministros alegaram que a decisão do júri, independentemente de qual seja, é soberana e não pode ser contestada, sob pena de violação constitucional. 

Entretanto, ao desconsiderar que essa decisão reverbera na não-punição de um homem que intencionalmente tentou matar sua ex-mulher por não aceitar que ela eventualmente estivesse se relacionando com outra pessoa, o STF também passa mensagens para a sociedade. Primeira, e mais diretamente, ele registra que é possível cometer um crime de feminicídio e não ser punido por isso. Em segundo lugar, a sobreposição da técnica jurídica sobre o conteúdo da decisão indica que o Direito, ao invés de servir de instrumento para a construção de uma sociedade mais igualitária, aparentemente está sendo subvertido para refletir o pensamento de uma parte que ainda é muito conservadora quando o assunto é o papel da mulher.

Motivo n.2. Ainda fazendo uma relação com o primeiro motivo, a segunda razão pela qual criticamos a decisão do STF é o fato de que essa instituição deve refletir os ideais do Estado Democrático de Direito. Se acreditamos que precisamos construir cada vez mais uma sociedade justa e equânime, isso deve se refletir em nossas leis. Nesse sentido, a lei do feminicídio existe, inclusive, por reconhecer que há condições sociais que colocam mulheres em estado de opressão. Embora ainda existam pessoas e grupos na sociedade que não compactuam com os ideais feministas e algumas que, mesmo nos dias de hoje, seguem acreditando que homens são superiores às mulheres e, portanto, que possuem poder sobre elas e sobre suas vidas. Cabe, então, ao Estado, por meio de suas políticas públicas e leis, afirmar direitos e proteger aquelas que estão vulnerabilizadas. Nesse sentido, o lema "Machistas não passarão" deveria ser um preceito não só do movimento feminista, mas também de todas as instituições democráticas.

Se as pessoas que compõem o júri são representantes da sociedade e vivem num Estado Democrático de Direito, elas precisam se submeter a esses ideais, independentemente de suas convicções pessoais. O STF é uma dessas instituições que resguarda o conteúdo da lei. Assim, previne-se que deliberações absurdas por parte do júri em relação a diversos temas tidos como “progressistas” - como racismo, homofobia, violência contra a mulher, por exemplo, que incitam uma mudança urgente nas bases e valores que formam nossa sociedade - tornem-se imutáveis. Por outro lado, se o STF não revisa tais deliberações para fazer valer os preceitos constitucionais, ele reafirma que o retrocesso e a barbárie são possíveis desde que os jurados concordem com os resultados.

Motivo n.3. Simbolicamente, a criação da lei do feminicídio é um reconhecimento de que a violência contra a mulher é um problema sério que a sociedade não pode mais aceitar. Se em outros tempos era comum que uma mulher levasse um tapa ou um soco porque, por exemplo, seu marido chegou em casa e o jantar não estava pronto , hoje, apesar de situações como essa ainda existirem, elas já não são tão naturalizadas quanto antes. A frase "em briga de marido e mulher ninguém mete a colher" não faz mais sentido, afinal, a violência contra a mulher tornou-se, ao longo dos anos, uma pauta pública. Para mantê-la como um problema público e estrutural, é necessário problematizar não apenas as ações violentas dos homens, mas também as justificativas usadas para violentar mulheres e  levar essa discussão aos órgãos do sistema de justiça criminal. Em relação ao caso de Nova Era, se o STF não questiona  as motivações do crime e os efeitos simbólicos de sua decisão, é como se a Suprema Corte dissesse que não vai "meter a colher" no assunto, pronunciando-se unicamente sobre a tecnicidade do julgamento.

Motivo n.4. É assustador que ainda seja possível na justiça brasileira, em pleno ano de  2020, o uso do argumento de "legítima defesa da honra”. A possibilidade da defesa do acusado usar essa tese como “justificativa” de um crime tão grave faz desmerecer décadas de luta feminista, que reverberaram em ganhos legais como a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio. Essa tese abre precedentes para sua replicação em outros casos, bem como para a retomada da banalização deste crime. Nesse sentido, é como se estivéssemos afirmando que a honra masculina vale mais do que a vida das mulheres. Também por esta razão considera-se que o STF errou ao não anular a decisão, tendo em vista que “defesa da honra” não se sustenta mais (ou não deveria se sustentar) como argumento legítimo nos dias de hoje.

Motivo n.5. O judiciário brasileiro como um todo tem suas alas mais conservadoras. E, vez ou outra, isso fica evidente, como no caso da morosidade em garantir o direito do aborto legal à criança vítima de estupro no Espírito Santo e, mais recentemente, no caso Mariana Ferrer, em que o julgamento moral da vítima acabou por responsabilizá-la pelo crime contra ela praticado. A absolvição de um autor confesso de tentativa de feminicídio é mais um exemplo disso. Embora a decisão pela absolvição tenha partido do Tribunal do Júri, não anular tal decisão é um retrocesso diante dos poucos avanços dos últimos anos. 

Para terminar, destacamos que o nosso Código Penal não possui a “legítima defesa da honra” como uma das hipóteses para afastamento da culpa de alguém. A legítima defesa é um instrumento geral, pensado para ser aplicado nos casos em que um indivíduo está diante de uma agressão injusta, atual e iminente, e precisa repeli-la com os meios necessários e suficientes para tanto. Pensando nesse instituto dessa forma, tal qual ele realmente existe em nosso ordenamento, de fato não há sentido em aplicá-lo para defender a honra de um homem em casos de ciúme: nessas situações, não há que se falar em injusta agressão a ser repelida. Apesar disso, ao longo de quase um século essa tese tem sido acionada por advogados de defesa e, até mesmo, por promotores de justiça para aliviar a culpa de homens que matam as suas esposas, companheiras, namoradas ou amantes quando tomados por ciúmes. Em 1991, o Superior Tribunal de Justiça tentou sepultar essa aberração jurídica que, em pleno ano de 2020, o Supremo Tribunal Federal decidiu reavivar. Longe de dizer às mulheres que as instituições jurídicas servem a sua proteção, a decisão do STF aumenta o medo delas. 

Se a lei do feminicídio aumentou a pena dos ciumentos que matavam as mulheres, o Supremo disse a eles foi “não se preocupe”. Basta convencer os jurados que a “mulher mereceu” que a absolvição será mantida. O que essa decisão garante é a perpetuação do direito do homem sobre a mulher, inclusive sobre sua vida. Uma demonstração de que a moralidade patriarcal e machista contamina também as instituições jurídicas brasileiras e transforma as mulheres vitimadas em grandes culpadas. A pergunta que ainda fica é: culpadas de que? Por qual crime? Aparentemente, por ser mulher e não corresponder  ao “padrão de comportamento” imposto pelos homens.

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