Como os municípios podem contribuir com a questão socioeducativa?
Municípios e socioeducativo: como as duas questões se conjugam?
Cinco passos à construção da política socioeducativa em âmbito municipal
Thais Lemos Duarte
Fernanda Machado Givisiez
Eduarda Lorena de Almeida
Ao se falar em segurança pública e em conflitos ocorridos em espaços urbanos, logo nos vem à cabeça a ação de órgãos do sistema de justiça criminal, como a polícia, o Judiciário e as prisões. Quase nunca refletimos sobre o Sistema de Garantia de Direitos, seus envolvidos e as ações desempenhadas em face dos adolescentes autores de atos infracionais. Para suprir um pouco dessa lacuna, no texto da Coluna “Por Elas” de hoje vamos tratar do Sistema Socioeducativo, com enfoque nas medidas de meio aberto.
De fato, o ano de 2020 trouxe fatos que, conjuntamente, jogam luz à temática: as eleições municipais e os 30 anos de publicação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Como e por que essas duas ocasiões se (co)relacionam? Por que é importante debater esse tema nas eleições municipais e incluir nos planos governamentais as políticas de responsabilização dos adolescentes autores de atos infracionais?
TaisEssas perguntas são ainda mais fundamentais em tempos de pandemia de Covid-19, quando a privação de liberdade de uma pessoa, sobretudo, de um adolescente, deveria ser ainda mais excepcional em razão dos grandes riscos de contágio.
Alguns aspectos gerais do ECA e do SINASE
Inspirado em diversas normativas internacionais, notadamente a Convenção sobre os Direitos das Crianças da Organização das Nações Unidas (1989), o ECA é considerado um grande avanço legislativo, modelo para vários países. Essa lei dispõe que a criança e o adolescente são prioridade absoluta do Estado, da família e da sociedade, estabelecendo-se, assim, a chamada doutrina da Proteção Integral.
O ECA regulamenta diversos âmbitos. Em um deles, indica que, quando verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar medidas socioeducativas aos adolescentes, isto é, às pessoas com idade entre 12 e 18 anos. Estas medidas buscam promover a responsabilização, a integração social e a desaprovação da conduta infracional, ganhando contornos e objetivos que deveriam ser muito diferentes das penas impostas aos adultos que cometem crimes.
Neste sentido, o ECA prevê seis tipos de medidas socioeducativas, todas regulamentadas pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE - Lei 12.594/2012), e que se dividem entre as cumpridas em meio aberto e as em meio fechado. Daremos maior foco àsfoco aqui às medidas não restritivas e privativas de liberdade.
As medidas em meio aberto são a prestação de serviço à comunidade (PSC) e a liberdade assistida (LA), com aplicação coordenada por órgãos municipais. Ambas devem ser executadas no limite geográfico da cidade, ou próximo, como forma de fortalecimento da comunidade, da família e dos adolescentes atendidos. A PSC consiste na execução de tarefas de interesse e de benefício da sociedade, realizada gratuitamente, em um prazo máximo de seis meses e com jornada limite de oito horas semanais. Já quando submetido à LA, o adolescente é acompanhado por um orientador/tutor por no mínimo seis meses.
As medidas em meio fechado cumpridas em restrição e privação de liberdade são, respectivamente, a semiliberdade e a internação. São de incumbência das unidades da federação.
Ainda, a advertência e a obrigação de reparar o dano, quando aplicadas de forma isoladas, são executadas no momento da audiência em que o adolescente fica face a face com o juiz e com outros atores do sistema de justiça, como promotores e defensores.
Embora o ECA e o SINASE disponham desse leque de medidas, quase sempre o foco de atenção sobre o sistema socioeducativo gira em torno da internação. E isso não é casual. Aqueles submetidos à privação de liberdade se encontram sob forte vulnerabilidade por estarem distantes de suas famílias e dos olhos de órgãos de controle social. Estão mais sujeitos, assim, a sofrerem tortura e outras violências cometidas pelo Estado.
Entretanto, é importante também dar destaque à PSC e à LA, sobretudo, porque 117 mil jovens cumpriam esses tipos de medidas no país em 2018, quantitativo correspondente a 82% do total das medidas aplicadas. Além disso, são medidas de menor intervenção e mais propícias ao fortalecimento de vínculos familiares e comunitários no processo socioeducativo. Por isso, vamos indicar a seguir possíveis movimentos a serem conduzidos pelos municípios naà estruturação de sua política socioeducativa, voltada a execução das medidas em meio aberto.
Cinco passos mínimos à construção de uma política municipal socioeducativa
Passo 1. Formação do Conselho Municipal de Direitos das Crianças e dos Adolescentes
Para a formulação de qualquer política pública, é fundamental a interlocução entre atores da sociedade civil e do poder público, como executivo, ministério público e judiciário. Neste sentido, como primeiro passo para a formulação de uma política socioeducativa em âmbito municipal, deve ser valorizada a construção de espaços deliberativos e paritários. Neste aspecto, salientamos o trabalho do Conselho Municipal de Direitos das Crianças e dos Adolescentes, formado por atores do Sistema de Garantia de Direitos e da sociedade civil. Esse Conselho deve ter estrutura própria e independente, com atuação pautada por lei municipal.
Em trabalho conjunto ao Conselho Municipal de Direitos das Crianças e dos Adolescentes, também deve ser formada a Comissão Interinstitucional do SINASE, constituída não só por atores municipais, como também estaduais. Este grupo busca acompanhar e avaliar como e quais ações são desenvolvidas para garantir que o atendimento aos adolescentes esteja de acordo com o ECA e com os parâmetros do SINASE.
Passo 2: Formulação do diagnóstico local
Não é possível falar em construção de uma política pública séria sem que suas ações se amparem por um diagnóstico situacional, com resultados fundamentados por evidências empíricas. Entre outros atores, o Conselho Municipal de Direitos das Crianças e dos Adolescentes deverá conduzir esta tarefa em estreita articulação com Universidades e com outros órgãos de pesquisa. Os resultados desse esforço analítico podem ser apresentados em audiências, debates e seminários, a fim de que atores públicos e membros da comunidade sejam sensibilizados sobre a pauta socioeducativa a ser conduzida em âmbito municipal.
Passo 3: Elaboração e definição do Plano Municipal de Atendimento Socioeducativo
Com os distintos atores engajados no Conselho Municipal de Direitos das Crianças e dos Adolescentes, na Comissão Interinstitucional do SINASE e com o diagnóstico situacional em mãos, o próximo passo é a elaboração do Plano Municipal de Atendimento Socioeducativo. Este documento deverá condensar os elementos debatidos e consensuados entre os atores do Sistema de Garantia de Direitos, indicando as etapas de implementação da política socioeducativa, os responsáveis por cada ação e os objetivos envolvidos.
O foco do Plano Municipal deverá ser a execução das medidas em meio aberto, como a PSC e a LA. Entretanto, não deve ignorar que os adolescentes de seu município podem estar sujeitos às medidas em meio fechado e que, em algum momento, retornarão ao convívio familiar e comunitário. Além disso, como o ECA aponta para a municipalização das ações destinadas às crianças e aos adolescentes, o Plano deve pressupor que o atendimento socioeducativo integre políticas sociais, como saúde, educação, esporte, lazer, cultura etc. Todas devem ser compreendidas como medidas preventivas, ademais de garantir direitos básicos. Portanto, o Plano Municipal deverá adotar uma análise sistêmica do socioeducativo, pensando em distintas estratégias de prevenção e integração comunitária do adolescente.
Passo 4: Definição do Sistema Municipal de Atendimento Socioeducativo
A execução do Plano Municipal de Atendimento Socioeducativo deve ativar um Sistema Municipal de Atendimento Socioeducativo, coordenado por uma estrutura governamental, contando também com a presença e a integração das políticas intersetoriais relacionadas diretamente à execução das medidas socioeducativas. Tal Sistema deve receber apoio técnico e financeiro dos estados e da União, bem como ser passível do controle social promovido pelo Conselho de Direitos das Crianças e dos Adolescentes, Comissão Interinstitucional do SINASE e, ainda, de outras organizações locais.
Os municípios têm autonomia para desenhar seus planos socioeducativos e, assim, instituir seu Sistema Municipal. Mas, não podem ignorar, por exemplo, o Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Este engloba equipamentos essenciais à execução das medidas em meio aberto, como os Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS), voltados à implementação da Política de Proteção Social Especial de Média e de Alta Complexidade. Quando não houver CREAS na cidade, mas apenas na região, o atendimento socioeducativo pode ser efetivado neste equipamento. Porém, isso não pode implicar em prejuízos aos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa. Devem ser, assim, estabelecidas algumas equipes volantes, ou mesmo, outros arranjos locais, viabilizando o atendimento próximo ao local de moradia dos adolescentes e familiares atendidas.
Passo 5: Monitoramento e avaliação da política municipal socioeducativa
O monitoramento e avaliação são atividades de naturezas muito próximas, embora apresentem nuances entre si. Em geral, o monitoramento é uma espécie de acompanhamento regular do andamento de uma política, mais centrado nos processos do que nos resultados, visando adotar medidas corretivas. Já a avaliação tende a ser feita ao final de um ciclo para concluir quais foram os resultados e os impactos de certa política. Busca compreender também as razões para o seu sucesso ou insucesso.
Isto é, os dois esforços analisam em que medida os objetivos previamente estabelecidos no Plano Municipal foram atingidos e, caso não, quais obstáculos foram encontrados ao longo e ao final da execução da política. Ambos constituem passos essenciais à gestão pública e, quando não efetuados, muitas ações podem não surtir efeitos, ou pior, podem gerar consequências adversas aos adolescentes e prejudicar o erário público. Infelizmente, porém, o Brasil apresenta baixa cultura de monitoramento e de avaliação de suas políticas, dificultando qualquer aferição rigorosa de ações comumente implementadas.
Tarefa de todos nós
São poucas as experiências municipais que colocam em prática os passos indicados acima, de modo que as medidas em meio aberto no Brasil são executadas ainda de forma bastante deficitária. Não à toa, a Pesquisa Nacional das Medidas Socioeducativas em Meio Aberto, realizada pelo Ministério do Desenvolvimento Social em 2018, indicou que 58% dos municípios elaboraram seu Plano de Atendimento Socioeducativo. Os demais possivelmente fecham os olhos às vulnerabilidades a que os adolescentes autores de ato infracional estão sujeitos.
Este contexto é ainda mais grave em meio a pandemia de Covid-19. A execução adequada de medidas em meio aberto seria uma maneira de responsabilizar os adolescentes por seus atos, ao mesmo tempo em que os retirariam de espaços de privação de liberdade, tornando-os menos suscetíveis aos riscos de contágio pelo novo coronavírus.
De fato, a construção de uma política municipal socioeducativa integral e sistêmica é uma opção política. E o fundamento dessa escolha requer reconhecer que é no âmbito local onde estão presentes as efetivas possibilidades de inserção social dos adolescentes, de aplicação dos componentes essenciais à execução das medidas socioeducativas que melhor respeitem o princípio da convivência familiar e comunitária e, por fim, um adequado atendimento socioassistencial. Além disso, pesquisas apontam que as intervenções realizadas no território são mais eficazes do que cercear o adolescente de seu direito de ir e vir. Logo, investir e qualificar políticas de responsabilização dos adolescentes autores de ato infracional, tais como a LA e a PSC, são não só medidas benéficas para toda a sociedade, como também contribuem para o enfrentamento de propostas temerárias que nos rondam de tempos em tempos, como a redução da maioridade penal, por exemplo.
Portanto, trazer essa pauta ao cenário atual é essencial e urgente. Devem ser cobradas ações consistentes dos candidatos às prefeituras e às câmaras municipais sobre o socioeducativo, não devendo ser ignoradas nas plataformas de campanha a aplicação estruturada das medidas em meio aberto. Uma vez eleitos, tais atores municipais devem se empenhar para construir e fortalecer uma política socioeducativa sólida, marcada pela participação social e por evidências, com objetivos e ações traçadas em um plano.
Não é demais destacar, porém, que a pauta é tarefa de todos nós, não só do poder público. Todos os atores, em conjunto, deverão empreender esforços para executar o atendimento socioeducativo adequado, embasado nos objetivos do ECA e do SINASE, com foco na realidade local. A concepção central é a de que o contexto de cometimento de ato infracional é fonte de vulnerabilidade social, além de fomentar a ruptura de vínculos familiares e comunitários dos adolescentes. E políticas públicas para sanar a questão devem ser executadas de modo integral e sistêmico, por toda a sociedade.
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