“A gente combinamos de não morrer”, mas está mais difícil com o racismo e a Covid-19
“A gente combinamos de não morrer”, mas está mais difícil com o racismo e a Covid-19
Daniely Roberta dos Reis Fleury
Valéria Cristina de Oliveira
Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro
Em 2016, Beyoncé lançou o álbum Lemonade. Foi o primeiro em que ela abordou, diretamente, o racismo, a pobreza e a violência policial que historicamente afetam a população negra nos Estados Unidos da América. No mesmo ano, o humorístico Saturday Night Live lançou um esquete também relacionado ao tema. No vídeo, pessoas brancas, em cenas cotidianas, como em casa e no trabalho, são surpreendidas por uma notícia que se espalha de tal maneira que chega até aos letreiros da Times Square. Ao contrário da expectativa comum, a destacada popstar de tom de pele ‘claro’ e que por vezes usa cabelos ‘alinhados’, Beyoncé, é (sempre foi) negra. A constatação parece fazer paralelo com a (re)descoberta da desigualdade racial e do racismo recentemente.
Esse não é um assunto novo entre nós. As artes, em suas diferentes linguagens, há muito instigam reflexões sobre a situação dos negros no Brasil e no mundo. Afinal, elas sempre foram poderosos instrumentos de difusão de saberes, de fortalecimento de identidades, de ampliação de protestos e denúncias. Rememoremos, como exemplo, que o samba o “negro entoou” cantos de revolta, evidenciou a violência policial e destacou que “a favela é um problema social”. O rap também cantou “o sucesso”, “a lama” e as dores do “negro drama”, cujas trajetórias são permeadas pelo preconceito, exclusão e risco de morte. Na literatura, a escritora negra Conceição Evaristo transpõe as suas próprias “escrevivências”, permitindo que 54,6% da população brasileira reconheçam em suas palavras as realidades vivenciadas por outros(as) negros(as). No conto “a gente combinamos de não morrer”, percebemos várias vozes que insistentemente são silenciadas e um enredo marcado pelas violências e violações que atingem pessoas negras e periféricas.
É histórica a mobilização das artes, das ciências e dos movimentos sociais, em especial do movimento negro. São representações que buscam conscientizar a sociedade brasileira acerca das disparidades raciais e evidenciar as estruturas que colocam negros(as) em posição de inferioridade, sujeição e inumanidade. É intrigante perceber como para alguns foi somente a partir dos dolorosos acontecimentos das últimas semanas (os quais, infelizmente, não são pontuais) que o racismo se tornou um tema de destaque.
O que mudou com a Covid-19 no debate sobre racismo?
Tão logo foram registrados os primeiros casos de Covid-19, a narrativa que pretende mitigar as desigualdades estruturais que permeiam a sociedade brasileira foi acionada com o discurso de que o vírus era democrático, uma vez que atingia igualmente a todos(as), sendo irrelevante se a pessoa era rica ou pobre, negra ou branca. O velho mito da democracia racial era novamente reificado ao invés do reconhecimento das “enfermidades crônicas” que tornam certos indivíduos mais susceptíveis ao contágio. É essa desigualdade estrutural que acaba por condicionar um grupo racial específico (negro) às conjunturas sociais de inevitável risco de morte.
Hoje podemos dizer – pouco – sobre a cor dos mortos por Covid-19. Os(As) negros(as), maioria entre aqueles que residem em áreas periféricas das grandes cidades, estão impossibilitados de adotar as medidas de isolamento social para a prevenção da doença. Os postos de trabalho que ocupam estão na linha de frente daqueles serviços considerados essenciais no comércio, na segurança (bem bastante demandado nesta pandemia), na limpeza e a conservação de equipamentos públicos e privados. Afinal, pretos e pardos são a maioria entre os trabalhadores manuais e informais. A desigualdade mostrou a sua crueldade com Miguel, criança negra de cinco anos que, sob os cuidados da patroa branca, caiu do nono andar de um prédio de luxo no Recife, enquanto a mãe, empregada doméstica, negra, passeava com os cães da família da patroa. Para a mãe de Miguel, ficar em casa ou realizar o trabalho remoto não foi uma opção.
Essa população também tem maiores dificuldades em pôr em prática as medidas de higiene. A segregação territorial a que estão sujeitos os(as) negros(as) faz com que a água potável ou o esgoto encanado não estejam disponíveis em seus locais de moradia. A distribuição desigual do território urbano transformam os pretos e pardos nos maiores afetados quando a prevenção e o adoecimento são determinados pelas condições sociais de saneamento e saúde, o que ajuda a entender as comorbidades associadas à sua saúde. Uma nítida demonstração de que a condição de humanidade ainda é um “status” a ser alcançado pelos(as) negros(as), assim como a efetiva garantia de igualdade de direitos e oportunidades.
Se há tanta desigualdade racial, por que não temos dados por raça/cor?
A resposta é bem simples. No Brasil, existe uma política (implícita e explícita) de desconsideração da raça pelas instituições, o que se torna um entrave para compreensão do racismo. Apesar da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, instituída pela Portaria nº 992/2009, estabelecer a necessidade de registros de raça/cor em todas as notificações de doenças, o preenchimento da informação racial ainda é tabu, mesmo nas unidades de atenção básica, conforme aponta Jaciane Milanezi.
Na pandemia, o preenchimento e a divulgação dos dados sobre raça se tornou um enorme desafio. Apenas para se ter uma ideia, a ficha da Covid-19 não possui a categoria raça/cor e a notificação de Síndrome Respiratória Aguda Grave não inclui o dado racial no sistema informatizado, embora esteja na ficha de papel. Como consequência os dados raciais estão ausentes em 34% dos óbitos por Covid-19. Neste caso, o racismo não está localizado no âmbito das relações interpessoais, expresso por meio de atos de preconceito, mas na omissão do Estado e de suas instituições, que invisibilizam demandas, e historicamente negligenciam as necessidades e políticas de promoção da equidade racial.
Para além da saúde, no campo da segurança pública, a questão racial também é desconsiderada. O desafio se apresenta na coleta de dados, bem como na “cegueira” em reconhecer o quanto o fator racial é determinante das ações policiais. A advogada Michele Alexander chama este fenômeno de “colorblindness”, o que poderíamos traduzir como “neutralidade racial”. Exemplo disso, é que a raça não é considerada como indicador relevante para análise e monitoramento de ações de segurança pública, especialmente da prática policial. Basta lembrar que a violência policial não faz home office no Brasil e vitimiza prioritariamente negros(as). Já tirou a vida de João Pedro, adolescente negro morto, dentro de casa, em uma operação policial em São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Também já matou 13 pessoas no Complexo do Alemão, numa operação onde os corpos negros ficaram expostos na rua, enrolados em lençóis e cobertores, retirados do morro pelos próprios moradores.
Poderíamos dizer que a desigualdade social, as comorbidades e a violência policial não deram trégua para a população negra durante a pandemia no Brasil. Concomitantemente, observamos, nos Estados Unidos da América, o crescimento dos movimentos contra o racismo e a violência policial. O estopim foi o assassinato do negro George Floyd por um policial branco, que o imobilizou por meio de uma manobra deixando-o sem respirar por quase nove minutos. Por aqui, o evento encontrou ressonância, mas também obstáculos, uma vez que para muitos “essa questão de racial é coisa de militante”, pois “somos todos brasileiros”, “todos iguais”.
O que os movimentos atuais nos ensinam sobre racismo?
Em junho de 2020, muito se fala sobre o racismo na intenção de que todas as tragédias repercutam em reflexão e num posicionamento efetivamente antirracista, para além de uma hastag. Nas redes sociais, uma parte da população que pouco se posicionava em relação à “assuntos delicados” parece ter saído da zona neutra com o movimento #blacktuesdayout.
Nas últimas semanas, vivenciamos um movimento que expôs como o risco de contaminação e morte por coronavírus é maior nas periferias (decorrência do racismo estrutural) e como aquele amigo “mais moreno” tem mais chances de ser parado em batidas policiais (decorrência do racismo institucional). Há quem diga que esses movimentos são ignorantes e perigosos, afinal, só existe uma humanidade. Se é assim, como explicar que a bala perdida sempre é encontrada num corpo negro?
A notícia de que nos Estados Unidos a minoria negra não se calou diante da violência, e teve apoio dos brancos para tomar as ruas, mesmo durante a pandemia, parece ter suscitado um debate importante: o racismo não é invenção dos negros e seu combate não deve se circunscrever a esse grupo. Os brancos, as elites políticas, compreendendo como o racismo opera, têm o papel fundamental de ajudar a canalizar demandas e viabilizar ações no interior das instituições. Mas, para isso, é preciso nomear o racismo e revelar as desigualdades raciais por meio de dados – sobretudo, os produzidos por instituições públicas, como as de saúde e de segurança.
O Brasil tem dificuldade em reconhecer o racismo, o que inviabiliza a prática necessária de racializar o debate sobre as desigualdades sociais e a violência institucional. O problema é que sem isso, é impossível desconstruir o “mito da democracia racial”. Como os americanos descobriam a negritude de Beyoncé, precisamos nos descobrir um país com maioria negra. Só assim poderemos começar a desarticular o racismo, o que demanda também reconhecer (des)privilégios sociais, econômicos e políticos que se associam com as raças (de negros e de brancos). Não há dúvidas de que as ciências e as artes exercem papel importante para mostrar vivências, críticas e denúncias de que há um grupo de pessoas cujas vidas parece importar menos. O combinado de não morrer já foi feito, basta agora um comprometimento efetivo para manutenção de vidas negras.
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